“O Conselho Federal de Medicina, na condição de órgão máximo do Sistema Conselhal e responsável por assegurar a integridade, a moralidade e o bom funcionamento das autarquias médicas em todo o território nacional, vem, com base em fatos apurados e em respeito à classe médica do Rio de Janeiro, esclarecer as razões que motivaram a decretação da intervenção administrativa no Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro (CREMERJ).
No final do ano de 2024, chegaram ao CFM diversas denúncias de malversação administrativa e orçamentária, que apontavam graves irregularidades na condução do CREMERJ. Cumprindo seu dever legal e institucional, o CFM designou uma auditoria especial, composta por equipe técnica multidisciplinar, que atuou de forma minuciosa durante cerca de um mês. O trabalho resultou em um relatório consolidado com quinze achados críticos, revelando um cenário de desorganização administrativa, fragilidade contábil, descumprimento de normas legais e falta de transparência.
A auditoria identificou dívidas superiores a cinquenta milhões de reais em créditos não cobrados, contratações irregulares e sem licitação, ausência de controles internos, suprimentos de fundos sem justificativa, omissões reiteradas no Portal da Transparência e inexistência de planejamento estratégico. Constatou-se também que o CREMERJ não possuía qualquer sistema efetivo de governança ou compliance, operando sob uma lógica personalista e sem observância aos princípios básicos da administração pública.
Diante da gravidade dos fatos, e com fundamento no art. 3º, incisos III e IV, da Lei nº 3.268/1957, e no Decreto nº 44.045/1958, o Plenário do Conselho Federal de Medicina deliberou, de forma unânime e fundamentada, pela intervenção administrativa no CREMERJ, por meio da Resolução CFM nº 2.423, de 6 de março de 2025, publicada no Diário Oficial da União em 14 de março do mesmo ano.
Ao assumir a gestão, a Diretoria Provisória nomeada pelo CFM encontrou uma autarquia em colapso institucional. Setores inteiros estavam desestruturados e sem coordenação mínima, contratos eram executados sem acompanhamento técnico ou controle contábil, documentos oficiais haviam sido extraviados ou se encontravam arquivados de forma precária, e inúmeros processos administrativos estavam paralisados por falta de gestão. Havia ausência de hierarquia funcional, sobreposição de atividades e total falta de governança. Servidores trabalhavam sem diretrizes, sem metas e sem instrumentos adequados de trabalho. O ambiente institucional era de abandono, marcado por improvisações, decisões informais e desvio da finalidade pública. Os recursos financeiros, por sua vez, encontravam-se comprometidos por despesas irregulares, repasses sem respaldo legal e compromissos firmados sem cobertura orçamentária. Em síntese, o CREMERJ apresentava um quadro de desordem total, que não apenas confirmou, mas ampliou as conclusões do relatório de auditoria, exigindo do CFM uma ação imediata, firme e corretiva.
Nesse contexto, a área de Recursos Humanos revelou um cenário igualmente grave. Ao determinar o retorno integral ao trabalho presencial, em substituição ao regime remoto irregularmente mantido pela antiga gestão, a Diretoria Provisória constatou que diversos servidores solicitaram desligamento imediato, sem justificativa funcional, o que gerou forte suspeita de existência de “funcionários fantasmas” — pessoas que, embora constassem na folha de pagamento, não exerciam suas funções ou sequer compareciam à autarquia. A medida de retorno presencial revelou vínculos fictícios, eliminou sobreposições e restabeleceu a regularidade das rotinas de trabalho, permitindo o efetivo controle da força de trabalho e a correção de distorções históricas.
Cabe aqui expor, quatro grandes achados de gravidade superior:
O primeiro diz respeito ao abandono arbitrário da sede histórica do CREMERJ, localizada na Praia de Botafogo, imóvel público pertencente à categoria médica. A antiga gestão decidiu esvaziar o prédio sem qualquer justificativa técnica, sem ato formal e sem respaldo legal, alegando de forma genérica supostas irregularidades estruturais. O resultado foi o desperdício de recursos públicos com o aluguel de imóveis particulares, a dispersão de setores administrativos, a perda de documentos e o enfraquecimento da presença institucional do Conselho. O edifício, que por décadas foi símbolo da medicina fluminense, foi relegado ao abandono, gerando danos materiais e morais à autarquia e à sua imagem perante a sociedade.
O segundo ponto, de gravidade ainda mais sensível, refere-se à arapongagem institucional descoberta pela Diretoria Provisória. Foram localizados 17 relatórios sigilosos elaborados por empresa privada contratada sem licitação, ao custo de R$ 224 mil em recursos públicos, contendo informações pessoais, bancárias e familiares de conselheiros e servidores. Tais documentos, apresentados como “relatórios de investigação interna”, configuraram verdadeira espionagem dentro da autarquia, em total violação da privacidade e da dignidade funcional de seus integrantes. A prática, absolutamente inaceitável sob qualquer perspectiva administrativa, representou um dos momentos mais sombrios da história do Conselho, tendo sido imediatamente comunicada ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal para apuração de eventuais ilícitos criminais e de improbidade administrativa.
O terceiro ponto, de igual relevância, refere-se à utilização indevida das representações regionais do CREMERJ. A auditoria revelou que diversas dessas unidades, que deveriam servir à aproximação da autarquia com os médicos do interior e à fiscalização profissional, haviam sido transformadas em espaços de uso pessoal e político, criados sem amparo regimental, sem controle, sem prestação de contas e, em muitos casos, sem qualquer atividade efetiva. Em algumas localidades, coexistiam duas representações próximas entre si, com estruturas duplicadas, gastos sobrepostos e ausência total de supervisão. O relatório apontou a existência de feudos administrativos, sustentados com verbas públicas, onde prevaleciam interesses particulares sobre o interesse público. Essas práticas desviaram o propósito essencial das representações, comprometendo sua legitimidade e consumindo recursos que deveriam ser direcionados à atividade-fim do Conselho.
Como quarto achado importante, a auditoria identificou a situação crítica e irregular envolvendo o sistema SIFA, que mantinha o CREMERJ em estado de dependência tecnológica e vulnerabilidade administrativa. O sistema, operado por empresa privada, concentrava o controle total dos dados da autarquia — incluindo informações financeiras, cadastrais e processuais —, sem que o Conselho possuísse acesso pleno aos seus próprios servidores ou ao código-fonte. Tal modelo configurava verdadeiro aprisionamento digital, em afronta à autonomia institucional e aos princípios da transparência e da eficiência. O contrato com a empresa encerrou-se em dezembro de 2024, contudo, os pagamentos haviam sido suspensos desde setembro, e mesmo assim a contratada continuou prestando serviços de rotina. Posteriormente, passou a alegar a existência de um suposto passivo de aproximadamente R$ 1,5 milhões, valor este que se encontra em discussão administrativa e judicial.
No momento da transição entre o SIFA e o novo sistema adotado pelo CFM, a empresa chegou a desligar unilateralmente o sistema, deixando o CREMERJ totalmente sem acesso aos seus dados institucionais por uma semana, o que paralisou atividades essenciais da autarquia. O acesso só foi restabelecido após decisão liminar favorável obtida pelo CREMERJ, que determinou a reativação imediata do sistema. A auditoria também constatou falhas graves de segurança da informação, ausência de logs e de backups regulares, além de incompatibilidade com as diretrizes da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). Diante disso, o CFM determinou a ruptura definitiva do vínculo com a Fattoria e coordenou a migração integral para o sistema SIEM/CFM, plataforma pública e auditável, garantindo a soberania digital da autarquia, a integridade das informações e a total transparência de sua gestão.
Somado a esses casos, cita-se ainda a identificação de um cofre no setor financeiro, mantido pelo antigo chefe daquela unidade, contendo R$ 17 mil em espécie, valor incompatível com a rotina da autarquia, que há anos não recebia pagamentos em dinheiro físico, apenas por cartão, pix ou boleto bancário. O achado foi considerado altamente suspeito, diante da ausência de registro contábil e de lastro documental. No mesmo contexto, apurou-se, por meio de depoimento de funcionário da instituição designado a serviços bancários, que valores expressivos — chegando a até R$ 270.000,00 — eram rotineiramente sacados na boca do caixa, das contas do CREMERJ, e entregues à tesouraria sem qualquer comprovação de destinação. Tal prática, além de destoar dos princípios da transparência e da legalidade, causa especial estranheza, uma vez que as transações bancárias destinadas ao pagamento das obrigações do Conselho se realizam, há anos, exclusivamente por meios eletrônicos.
Constatou-se também o uso indevido de cartão corporativo, empregado para pagamento de aparelhos eletrônicos, reservas em hotéis e outras despesas pessoais, todas sem processo formal ou procedimento licitatório. Verificou-se, ainda, a cessão irregular de sala da sede do CREMERJ à Sociedade Brasileira de Ortopedia e Traumatologia do Rio de Janeiro, sem qualquer retorno financeiro, contrapartida ou contrato formal. E, por fim, a auditoria identificou grave irregularidade no contrato da representação de Niterói, onde o Conselho pagava por um espaço enquanto utilizava outro, menor e sem estrutura adequada, sendo o imóvel originalmente contratado utilizado pela UNICRED, sem qualquer aditivo, formalização ou ajuste de preço.
Vale considerar também a falta de controle das verbas de representação e dos jetons, que antes ficavam sob responsabilidade do setor de Recursos Humanos. A auditoria verificou que não havia qualquer juntada de documentação comprobatória das participações dos conselheiros e delegados, sendo aceitos para pagamento meros formulários preenchidos de forma incompleta, sem atas, fotos, registros de presença ou relatórios anexos. Ainda assim, os valores eram liberados e pagos, comprometendo o já combalido cofre da instituição. Essa prática demonstrou a total ausência de fiscalização, a banalização do uso dos recursos públicos e o desrespeito absoluto aos princípios da moralidade e da economicidade.
Esses fatos, somados aos demais achados de auditoria, compuseram um quadro de deterioração institucional que exigiu do CFM uma resposta firme, técnica e imediata. Durante os seis meses subsequentes à intervenção, a Diretoria Provisória promoveu uma reconstrução estrutural e administrativa sem precedentes no CREMERJ, reorganizando setores, restabelecendo a hierarquia funcional e implantando mecanismos efetivos de controle interno, compliance e transparência. Foram revistos e rescindidos contratos irregulares, reestruturada a folha de pagamento, corrigidas distorções salariais, valorizados servidores efetivos e eliminadas funções fantasmas e sobreposições. A gestão de pessoal foi profissionalizada, e os fluxos administrativos foram padronizados, com novos manuais, rotinas e comunicação institucional exclusiva por canais oficiais, pondo fim ao improviso e à informalidade que marcavam a antiga administração.
No campo financeiro e tecnológico, a transformação foi igualmente profunda. O CFM e a Diretoria Provisória promoveram a migração completa do sistema SIFA para o SIEM/CFM, garantindo autonomia, integridade e segurança dos dados, além da implantação integral do Sistema Eletrônico de Informações (SEI), que multiplicou a produtividade e assegurou rastreabilidade total dos processos. O setor de compras e contratos foi saneado, com 16 novas licitações regulares, e o fluxo de caixa revertido de déficit crônico para superávit, fruto de medidas de austeridade e incremento na arrecadação. Foram ainda retomadas as obras da sede histórica em Botafogo, reativadas comissões técnicas, modernizados sistemas de fiscalização e ampliada a adesão às prescrições eletrônicas, consolidando o CREMERJ como uma autarquia novamente funcional, íntegra e eficiente — restaurada sobre bases sólidas de governança, legalidade e respeito à categoria médica.
Em setembro de 2025, visando garantir a estabilidade e a continuidade da reestruturação, o CFM editou a Resolução nº 2.446/2025, prorrogando a intervenção e designando nova diretoria provisória, composta por médicos fluminenses, para conduzir a fase final da transição e consolidação da governança institucional. Todo o processo foi acompanhado e comunicado ao Ministério Público Federal e à Polícia Federal, e reconhecido pela Justiça Federal como legítimo e necessário.
O Conselho Federal de Medicina reafirma que a intervenção no CREMERJ não foi uma escolha política, mas um ato de responsabilidade institucional e de defesa do interesse público. O CFM não se curvou à omissão e não se furtou ao dever de agir. Atuou com coragem, transparência e amparo legal para restabelecer a ordem, proteger o patrimônio da categoria e assegurar que o Conselho Regional do Rio de Janeiro voltasse a cumprir sua missão em prol da ética e da sociedade.
O CFM permanecerá vigilante, intransigente com qualquer tentativa de desvio de finalidade, e firme em sua missão de garantir que o sistema conselhal funcione com ética, transparência, legalidade e eficiência, princípios que devem nortear toda instituição pública e, sobretudo, aquelas que representam a Medicina brasileira.“
Atenciosamente,
José Hiran da Silva Gallo
Presidente do CFM